Seria pecado comer
carne com sangue?
No Velho Testamento
existia o sistema sacrificial para remissão de pecados. O sangue de um animal
precisava ser aspergido para acontecer a expiação. O sangue representava a vida
e apontava para o maior sacrifício de todos.
“Porque a vida da
carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação
pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida”
(Levítico 17:11).
Este sacrifício
seria o derramamento do sangue do Cordeiro salvador. Jesus Cristo derramaria
seu sangue para salvação de muitos.
Nesta perspectiva,
entendemos que tudo que apontava para a vinda de Cristo se cumpriu em sua morte
e ressurreição. Nós não praticamos mais sacrifícios e muito menos esperamos
ainda o messias. Estas coisas já aconteceram.
Então surge a
pergunta: Comer carne com sangue ainda é pecado?
Respondo com as
seguintes objeções.
1. O
problema nunca foi o sangue em si, mas a sua representação.
O sangue
representava a expiação que Cristo traria a seu povo. Simbolizava aquilo que é
mais importante para o ser humano, a salvação. Porém, isso já aconteceu. Não
tem mais essa representação.
2. Vivemos
na época da graça.
Todas as restrições
alimentares, inclusive a de comer carne com sangue, eram leis cerimoniais que
visavam diferenciar o povo de Deus (os israelitas), dos gentios (os outros
povos). Nesse sentido, o povo devia ser santo (separado, consagrado ao Senhor),
obedecendo todas as Suas leis. Portanto, na época da graça, pensar que poderá
obter algum benefício por um mero ato exterior de não ingerir sangue é uma
ofensa àquilo que Jesus nos libertou.
Atos externos não
significam nada nos dias da graça. O pecado está no coração e não no alimento.
Deixar de comer independentemente do tipo de comida não trará nenhum benefício
espiritual para nossas vidas.
A restrição de comer
sangue cai por terra quando Jesus suspende as restrições alimentares a partir
da nova aliança de Seu sangue, a aliança da graça que agora incluí os gentios.
Agora, Cristo é o
Cordeiro de Deus que derramou seu sangue. Não existem mais animais que dão seu
sangue (vida) pelos nossos pecados! Após o sacrífico pleno e perfeito de
Cristo, não existe mais o sistema sacrificial usando animais.
Por isso, agora não
há mais necessidade dessa diferenciação, pois os gentios são incluídos na
aliança e os animais não são mais usados como substitutos do ser humano
pecador!
3. Nada
de fora que entra na boca contamina espiritualmente.
“Não compreendeis
que tudo o que entra pela boca desce para o ventre e, depois, é lançado em
lugar escuso? Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o
homem”. Mateus 15:17,18.
“Nada há fora do
homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o
contamina”. Marcos 7:15
Nestes textos, Jesus
estava tratando de tradições, ou seja, os discípulos comiam sem lavar as mãos.
O contexto nada fala a respeito de restrições alimentares ou mesmo de nenhum
alimento.
Jesus deixa bem
claro que no tempo da graça não há NADA que nos faça pecar pelo simples fato de
ingerirmos alguma coisa.
Quando Cristo usa a
palavra NADA, Ele está nos dizendo que nem porco, nem peixe, nem sangue, nem
mesmo veneno poderá influenciar a vida espiritual de alguém.
“Um crê que de tudo
pode comer, mas o débil come legumes; quem come não despreze o que não come; e
o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu” (Romanos 14:2-3).
O que significou a
decisão do Concílio de Jerusalém?
“Pois pareceu bem ao
Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas
essenciais: que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do
sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas
coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde.” Atos 15:28,29
O enfoque aqui está
nas quatro coisas que a igreja primitiva pediu aos gentios convertidos que se
abstivessem.
A primeira coisa da
qual são instruídos a se abster é “coisas sacrificadas a ídolos”. Muitos
comentaristas, se não todos, concordam que nessa perspectiva estava o problema
de comer carne oferecida em sacrifícios nos altares pagãos. Os pagãos tinham
seus altares para vários deuses falsos e em suas cerimônias rituais pegavam
alimentos, particularmente carne, e colocavam à frente da estátua do ídolo. Ao
encerrar-se a cerimônia, tinham de dar uma finalidade para a carne. Afinal das
contas, os ídolos não podiam ingerir esses alimentos. Então, tendo uma certa
propensão comercial, os sacerdotes desses cultos pagãos levavam a carne para o
mercado e a vendiam para obter lucro.
A prática era
totalmente escandalosa para os judeus. Durante séculos eles foram instruídos
com relação às leis cerimoniais e dietéticas para serem escrupulosos quanto ao
comer o que era puro, abstendo-se do que era impuro. O povo judeu era
extremamente cuidadoso em evitar o uso de qualquer coisa que houvesse sido
parte ou participasse de um ritual pagão, particularmente, comer carne que
havia sido oferecida a ídolos.
Isso se torna
problemático no texto diante de nós porque parece que se abster da carne foi
estabelecido como uma obrigação necessária aos gentios convertidos ao entrarem
na comunidade do Novo Testamento. Poucos anos depois, quando o apóstolo Paulo
escreveu às igrejas sobre várias questões, ele abordou esse assunto no contexto
da liberdade cristã (em Romanos 14). Lá ele aborda a necessidade dos cristãos
de serem sensíveis quanto aos irmãos e irmãs mais fracos, mas nesse contexto
ele declara que a questão da carne oferecida aos ídolos é adiaphorous (irrelevante),
o que significa que intrinsecamente não tem nenhuma influência moral
particular. Em outras palavras, comer carne oferecida aos ídolos é irrelevante.
Não há nada particularmente pecaminoso nisso ou particularmente virtuoso.
Esse é o tipo de
coisa com que Paulo teve de lidar na igreja de Corinto e em Roma e em outras
partes onde as pessoas passaram a acreditar que partilhar carne oferecida a
ídolos era pecado. Paulo deixou claro que isso não era pecado, mas para aqueles
que acreditavam que era pecaminoso, para esses seria. Quanto àqueles que tinham
liberdade para participar, Paulo disse que deveriam ser sensíveis ao irmão mais
fraco, e não lançar isso no rosto das pessoas que eram contrárias. Ao mesmo
tempo, o apóstolo nunca permitiria que os escrúpulos do irmão mais fraco se
tornassem lei para toda a igreja, algo que as pessoas tentaram fazer
repetidamente na história da igreja.
A igreja primitiva
estava dizendo que num momento tão crítico, quando os gentios estavam apenas
iniciando plena comunhão com a igreja, e trazendo consigo na bagagem o comer
carne oferecida a ídolos, o mais sábio a fazer era abster-se. Obviamente isso
não significava uma obrigação perpétua, colocada sobre as igrejas por todas as
eras, porque nos deparamos mais tarde com Paulo declarando essa ação como adiaphorous (irrelevante).
Em Atos 15 temos um
exemplo de decisões tomadas temporariamente, no intuito de prudência, o que
sabemos, a partir do restante do Novo Testamento, não continuaram
perpetuamente, a não ser a proibição contra imoralidade e fornicação.
Tiago tem uma mente
aberta e está em sintonia com o cuidado orientador de Deus para a igreja
universal na qual cristãos judeus e gentios aceitam uns aos outros como irmãos
e irmãs.
Tiago sabe que os
judaizantes não ficarão satisfeitos com uma exortação negativa. Dessa forma,
ele sugere quatro recomendações aplicáveis aos cristãos gentios que se associam
com os judeus cristãos, especialmente aqueles que vivem na dispersão. Ele visa promover
a unidade entre os crentes das duas ascendências, a judia e a gentílica.
Alguns pátios do
templo eram fechados aos gentios (comparar com 21.28–29), mas com exceção dessa
limitação, os cristãos judeus e gentios estavam se misturando livremente, desde
a visita de Pedro a Cornélio em Cesareia (10.25–48; veja também 11.19–26). Assim,
a recomendação de Tiago constitui um apelo para que os crentes judeus e gentios
aceitem uns aos outros e promovam a unidade da igreja cristã. Tiago tenta
apaziguar os dois lados; e como revela o restante desse capítulo, ele é
bem-sucedido ao fazê-lo.
Portanto, vemos:
1. Em Atos 15 foi indicado abstenção de comer carne oferecida a ídolos naquele momento, porém, logo após em Romanos 14 ele afirma ser irrelevante, ou seja, não constitui pecado.
2. A
mesma proposta de harmonização para o bem do evangelho está registrada logo em
Atos 16. Paulo ordena a circuncisão de Timóteo para que pudesse ter melhores
condições de pregar o evangelho para judeus. Podemos perceber que estas
recomendações, tanto em Atos 15 como em Atos 16, são de caráter harmonioso de
convivência. Não se tratava de ser ou não pecado.
Deus tenha misericórdia de nós.
Frases:
Simon Kistemaker, Atos, trans. Ézia Mullis e Neuza Batista da Silva, 2a edição., vol. 2, Comentário do Novo Testamento (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2016), 91.
R. C. Sproul, Estudos Bíblicos Expositivos em Atos, trans. Rubens Thomaz de Aquino, 1a edição. (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017), 248.
"Era comum que judeus e gentios frequentassem as mesmas igrejas, e que com frequência causassem sérias dificuldades de relacionamento, pois seguiam práticas culturais e religiosas bastante diferentes. Assim, essas quatro áreas são uma tentativa de construir pontes entre as duas culturas. Essa carta dava liberdade aos gentios para se converterem ao Cristianismo e adorarem, independentemente das regulamentações mosaicas, mas pedia-lhes que respeitassem as sensibilidades dos cristãos judeus e evitassem práticas que pudessem ofendê-los. Esses quatro são pedidos e não requisitos e devem ser aplicados apenas a igrejas compostas de cristãos judeus e gentios tentando viver em harmonia".
Grant R. Osborne, Atos dos Apóstolos, trans. Renato Cunha, Primeira edição., Comentário Expositivo do Novo Testamento (São Paulo: Editora Carisma, 2022), 327.
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